Por Timothy Keller
Na Bíblia, o primeiro livro do Novo Testamento, o Evangelho
de Mateus, inicia sua narrativa com uma genealogia. Sim, e muitos leitores têm
a tendência natural de achar tal sucessão de nomes algo enfadonho e, o que é
pior, um tanto sem sentido. Mas o que será que realmente Mateus quer dizer com
tal texto?
A essa altura, precisamos nos lembrar da cultura em que ele
vivia e escrevia. Vivemos em uma cultura individualista em que as pessoas se
recomendam umas às outras com uma lista de diplomas, experiências de trabalho e
realizações. Não se agia assim em uma sociedade mais comunitária, orientada
para a família. Mateus 1 pode parecer uma genealogia, e é, mas também é um
currículo. Naquele tempo, era sua família, sua estirpe e seu clã — as pessoas a
quem você estava ligado — que constituíam seu currículo. Assim, a genealogia
era um modo de dizer ao mundo: "Este sou eu".
É interessante saber que naquela época as pessoas adulteravam
o próprio currículo assim como acontece hoje. Temos a tendência de deixar de
fora partes do nosso histórico que talvez não nos deixassem tão bem, e as
pessoas faziam o mesmo na antiguidade. Sabemos que Herodes, o grande, expurgou
diversos nomes de sua genealogia pública por não querer que ninguém soubesse a
ligação existente entre eles. O propósito de um currículo genealógico era impressionar
quem o visse com a alta qualidade e a respeitabilidade das raízes que ele
descrevia.
Mateus, no entanto, faz o oposto com Jesus. Essa genealogia é
assustadoramente diferente de outras da antiguidade. Para início de conversa,
ela relaciona cinco mulheres, todas mães de Jesus. Isso não parecerá estranho
ao leitor moderno, mas nas sociedades patriarcais da época a mulher quase nunca
era nomeada nessas listas, muito menos cinco delas. Seria possível chamá-las de
"proscritas pelo gênero" nessas culturas. Contudo, figuram na
genealogia de Jesus. Além disso, a maior parte das mulheres do currículo de
Jesus eram gentias (Tamara, Raabe, Rute). Eram cananeias e moabitas. Para os
judeus antigos, essas nações eram impuras; não tinham permissão para entrar no
tabernáculo ou no templo para adorar. Poderíamos chamá-las de "proscritas
pela raça", todavia fazem parte da genealogia de Jesus.
Existe outro aspecto surpreendente nessa genealogia. Ao
nomear essas mulheres em particular, Mateus recorda deliberadamente a seus
leitores alguns dos incidentes mais sórdidos, repugnantes e imorais da Bíblia.
Por exemplo, ele diz que Judá foi o pai de Farés e Zará, cuja mãe foi Tamar (v.
3). Relembre o que aconteceu. Tamar enganou o sogro, Judá, de modo a induzi-lo
a se deitar com ela (embora a história completa deixe claro que Judá a tratara
com injustiça). Foi um ato de incesto, contrário em toda a Bíblia à lei de
Deus. Embora Jesus descendesse de Farés e não de Zará, Mateus inclui os dois,
além de Judá e Tamar, para se certificar de nos trazer à memória toda a
história. Foi dessa família conturbada que o Messias veio.
Lembre-se também de quem foi Raabe (v. 5). Ela era não só
cananeia como também prostituta. Talvez a personagem e a história mais
interessantes em toda a genealogia, no entanto, estejam no versículo 6. Ali se
diz que na linhagem de Jesus está o rei Davi. Você logo pensa: "Ora, eis
alguém que todo o mundo quer ter na genealogia — da realeza!". Contudo,
Mateus acrescenta, em um dos grandes e irônicos eufemismos da Bíblia, que Davi
era pai de Salomão, gerado "daquela que havia sido mulher de Urias".
Se você não soubesse nada da história bíblica, acharia isso estranho. Por que
simplesmente não relacionar o nome dela? Ela se chamava Bate-Seba, mas Mateus
está nos convidando a recordar um trágico e terrível capítulo da história de
Israel.
Quando Davi estava foragido, fugindo do rei Saul para salvar
a própria pele, um grupo de homens o acompanhou até o deserto, ficou em torno
dele e pôs a vida em risco para protegê-lo. Foram chamados de guerreiros de
Davi. Arriscaram tudo por ele, sendo que Urias era um deles, um amigo a quem
Davi devia a vida (2Sm 23.39). No entanto, anos mais tarde, depois de se tornar
rei, ele viu a mulher de Urias, Bate-Seba, e a desejou. Dormiu com ela. Então
providenciou para que Urias fosse morto a fim de se casar com ela. Assim o fez,
e um dos filhos dos dois foi Salomão, de quem Jesus descendia. Você sabe por
que Mateus deixou de fora o nome de Bate-Seba? Não por desrespeito a Bate-Seba
— mas por uma crítica a Davi. Foi dessa família conturbada e desse homem tão
falho que veio o Messias.
Portanto, temos aqui forasteiros morais — adúlteros, gente
envolvida em relacionamentos incestuosos, prostitutas. De fato, somos lembrados
de que até os ancestrais de Jesus mais proeminentes e do sexo masculino — Judá
e Davi — foram fracassos morais. Temos também forasteiros culturais, de raça e
de gênero. A Lei mosaica excluía essas pessoas da presença de Deus e, no
entanto, elas são todas publicamente reconhecidas como ancestrais de Jesus.
O que isso significa? Primeiro, mostra que as pessoas
excluídas por questões culturais, excluídas pela sociedade respeitável e
excluídas até pela Lei de Deus podem ser introduzidas na família de Jesus. Não
importa sua estirpe, não importa o que você fez, não importa se você matou
alguém. Se você se arrepender e crer nele, a graça de Jesus Cristo é suficiente
para cobrir seu pecado e uni-lo a ele. Na antiguidade, havia o conceito de
"impureza cerimoniar. Se quisesse permanecer santo, ou respeitável, ou
bom, você precisava evitar o contato com o profano.
Considerava-se que ser profano era "contagioso", por
assim dizer, de modo que você tinha de se manter separado. Mas Jesus subverte
isso. Sua santidade e bondade não podem ser contaminadas pelo contato conosco.
Em vez disso, sua santidade nos contamina por nosso contato com ele. Achegue-se
a ele, independentemente de quem você é e do que fez, não importa o quanto
esteja moralmente maculado, e ele pode deixá-lo puro como a neve (Is 1.18).
No entanto, veja o caso do rei Davi. Ele tinha todas as
credenciais de poder do mundo — era um homem, não uma mulher; era judeu, não um
gentio; era da realeza, não da classe pobre. Contudo, como Mateus nos mostra,
ele também só pode participar da família de Jesus pela graça. Seus feitos
perversos eram piores do que qualquer coisa praticada pelas mulheres dessa
história. No entanto, ali está ele. Não foram incluídas as pessoas boas e
deixadas as pessoas más de fora. Todas estão incluídas só pela graça de Jesus
Cristo. Só o que Jesus fez por você pode lhe conferir uma posição diante de
Deus.
Não há ninguém, então, nem mesmo o ser humano mais
maravilhoso, que não necessite da graça de Jesus Cristo. E não há ninguém, nem
O pior ser humano, que possa deixar de receber a graça de Jesus Cristo se
houver arrependimento e fé.
Em Jesus Cristo, prostituta e rei, homem e mulher, judeu e
gentio, uma raça e a outra raça também, os moralmente corretos e os imorais —
todos ocupam lugar idêntico. São igualmente pecadores e perdidos, aceitos e
amados. Na versão bíblica Almeida Século 21, o capítulo 1 de Mateus está
repleto do tradicional verbo "gerar"— "Fulano gerou sicrano que
gerou beltrano e assim por diante". Enfadonho? Não. A graça de Deus é de
tal modo incisiva que até o "gerou" da Bíblia está impregnado da
misericórdia divina.
Deus não se envergonha de nós, aqueles que nele crermos e em Seu
filho, Jesus Cristo. Somos todos da sua família. Hebreus 2.11 diz: "...
não se envergonha de chamá-los de irmãos".
Há outro aspecto nisso tudo. Todas as culturas incentivam
seus integrantes a menosprezar determinados indivíduos, a fim de se
autoafirmarem pela própria superioridade. Podem ser pessoas de outra raça ou
classe. Talvez você menospreze os esnobes tão bem-educados ou os ignorantes sem
educação alguma. Talvez despreze as pessoas cuja visão política você acredita
estar destruindo o país. Em todos esses exemplos, ensinaram-no a ver algumas
pessoas como impuras, inaceitáveis, profanas — ao mesmo tempo em que você é
ótimo. Os valores de Jesus Cristo são radicalmente diferentes. O mundo valoriza
estirpe, dinheiro, raça e classe. Jesus vira tudo isso de cabeça para baixo.
Esse tipo de coisa, tão importante fora da igreja de Cristo, não deve ser
levada para dentro dela. Em certo sentido, ele declara: "Na minha família,
essas coisas tão valorizadas no mundo lá fora não devem ter tanta
importância".
Trecho do livro O Natal Escondido (Vida Nova, 2017).